Já fiz um conhecido teste de personalidade algumas vezes na minha vida, em diferentes fases, e dentre os 16 tipos que são apresentados, o meu resultado é sempre consistente. Totalmente emoção acima da razão, mais observadora do que julgadora, intuitiva e equilibrada entre a introversão e a extroversão, com a porcentagem mais a favor do meu lado introvertido - o que faz total sentido. Sou aquela pessoa que ao mesmo tempo que adora conhecer a fundo histórias e vivências, necessita de silêncio, da permissão de viajar na minha própria cabeça barulhenta, de tempos maiores de solidão para carregar todas as energias do meu corpo. Ou seja, uma introvertida tímida que às vezes gosta de bater uns papos.
Dia desses, no ônibus intermunicipal entre o Rio e a serra, dei o “azar” - assim pensei - de ir com uma senhora sentada do meu lado (escolho os horários que sei que tenho mais possibilidade de ir sozinha nos dois bancos). E não era uma senhora qualquer: era uma mulher contemplativa, buscando papo para preencher as duas horas e meia de viagem. Nos primeiros minutos, só não revirei os olhos por uma questão de educação. Mas alguma coisa mudou ao longo do passar dos minutos.
Ao ver que eu carregava um livro (Mulheres, Mitos e Deusas, da Martha Robles), ela começou a falar sobre os livros de ficção que ela gostou de ler durante a vida. Citou Madame Bovary, A Cor Púrpura e reforçou a importância de Clarice Lispector na sua formação enquanto leitora. Na minha cabeça, as histórias que eu conhecia mencionadas por ela tinham uma linha em comum: o feminino buscando por espaço.
Acontece que Tereza, xará da minha avó (que por acaso também era uma leitora assídua), teve uma vida privada de muitas liberdades. Foi "orientada" (me pareceu mais uma obrigação imposta pelos seus pais) a se casar com um homem que não amava. Um homem que a batia por ela não conseguir engravidar. Sua rejeição intrínseca e silenciosa à ideia de ter um filho era um segredo que ela guardava às sete chaves. Ela nunca quis descobrir qual era o problema com a sua fertilidade, sequer sabe se existe de fato um problema, pois nunca se viu colocando no mundo uma criança que fosse fruto de um casamento infeliz. Pensa que foi um livramento concedido por Deus.
Tereza ama poesia. Na sua vida, se afundou nos livros para fugir da sua própria realidade, já que sentia que não teria como viver emoções genuínas em sua vida. Era vista como “esquisita” pelas vizinhas e pelo seu marido, que já chegou ao ponto de arrancar um livro da sua mão e jogar no chão com brutalidade, na sua frente. Ela disse que algumas memórias são como um nevoeiro para ela, mas acredita que se tratava de um livro da Carolina Maria de Jesus, ou algum escrito da Clarice Lispector. Simbólico, se não fosse triste. Mal sabe ela que sua história daria um livro, daqueles de palavras fortes e acontecimentos secos de serem digeridos.
As ex-vizinhas de Tereza se encontravam diariamente em uma praça na pequena cidade que mora até hoje, e ficavam lá conversando enquanto os maridos trabalhavam. Tereza não tinha muita paciência (segundo ela mesma) para os relatos de mulheres que julgavam as outras que queriam ser livres das amarras de um casamento ou da função de dona de casa. Encaravam a vida com seus maridos, onde entendiam ter a função de provedoras de um lar arrumado e filhos exemplares, como uma benção divina. "Deus me livre não ter marido", poderia ser o lema daquele grupo. Tereza, em silêncio, adotava o lema oposto.
O ex-marido de Tereza faleceu em decorrência de um problema cardíaco há 14 anos atrás. Ela me confessou não ter sentido dor, apenas um vazio que lhe era estranho e uma empatia pela cunhada, que sofreu muito com a perda do irmão. Tereza se sentiu perdida por um período, mas logo enxergou um caminho para se reencontrar (na minha visão, para finalmente se encontrar, pela primeira vez). Pediu ajuda de conhecidos para aprender a utilizar a internet. Com o tempo, encontrou pessoas na vida online e offline que adoram literatura. E não, nunca pensou em buscar um novo amor depois que ficou viúva.
Hoje, Tereza visita o Rio de Janeiro mensalmente para participar de eventos culturais junto com aqueles que viraram seus amigos. No auge dos seus 82 anos, foi pela primeira vez à Bienal, e amou a experiência (mas enfatizou que os estandes eram muito cheios - disse que prefere as feiras menores, e eu tô com ela nessa). Está se aventurando na literatura contemporânea, e claro que já garantiu sua estadia para a Flip, em Paraty.
Minha viagem de ônibus com duração de duas horas e meia, parece ter se transformado em uma ida à esquina de 20 minutos. Não vi o tempo passar. O que no início, para uma personalidade introvertida e amante de fone de ouvido, parecia um sacrifício, se tornou em uma das conversas mais legais que eu já tive com alguém. Uma alma feminina machucada, que fala sobre a vida com tanta empolgação e se sente preenchida sem precisar de filhos, marido ou alguém presente o tempo todo. É feliz com suas amizades, com os poucos membros da sua família e com a sua solidão cheia de propósito.
Tereza me disse que tem o sonho de escrever um livro de poesias. Na verdade, ela já começou, mas ainda não terminou e nem o deixou "aflorado do jeito que se espera de um livro de poesias", como ela mesma disse. É bonito sonhar em qualquer idade. Mais uma nota mental que essa mulher conseguiu colar em mim.
Fica aqui a minha homenagem para alguém que me lembrou que seres humanos ainda merecem ser ouvidos, e que o feminino, sim, é uma espécie de força divina que merece cada minuto da nossa atenção, ao contrário das imposições sociais sobre ele. Os sonhos de uma mulher de 82 anos se encontraram com os sonhos de uma mulher de 30 em um ônibus por acaso, mas nem tão por acaso assim. Independente da época em que se vive, independente da quantidade de anos que passem, histórias se esbarram para lembrar que antes de ser vista pelo mundo, é preciso ser vista, com carinho, por si mesma.
*Eu pedi permissão à Tereza para contar a história dela e expor o lado delicado do seu casamento. Ela me disse que quer mesmo que todo mundo saiba que não vale a pena "viver um amor que não seja amor”.
Do outro lado do muro ✨
Links legais à vista :)
"...que todo mundo saiba que não vale a pena viver um amor que não seja amor. "
que coisa mais linda, Bel! obrigada por mais esse texto <3