A menina devia ter uns cinco ou seis anos de idade. Ela e a mãe estavam na minha frente, na fila de uma sorveteria, e a pequena não parava de pular e falar, enquanto esperava ansiosa pela hora em que ia colocar suas pequenas mãos em uma casquinha de sorvete. Em menos de dez minutos, ela falou sobre o brinquedo que queria comprar na loja do andar de baixo, sobre a amiguinha que ia encontrar mais tarde, sobre o menino do colégio que ela não suportava e por fim, sobre qual sabor queria provar. “Chocolate, mãe! Chocolate! Chocolate!”. Pulou e agarrou-se - literalmente - na saia da mãe enquanto repetia, como em uma canção sem ritmo e frenética, que queria a casquinha de chocolate. Assim que colocou suas mãos no sorvete, esqueceu-se de acalmar a empolgação, e suas pequenas pernas esqueceram-se de parar de pular. O sorvete caiu no chão. E o silêncio inundou o rosto daquela menina.
Algumas palavras simplesmente não saem da minha boca como deveriam sair. Eu penso nelas, elaboro e conheço o significado de cada uma delas. Eu sei o exato contexto em que eu quero e preciso aplicá-las. Mas elas simplesmente não saem - ou saem errado. Dizem que isso é um problema de quem pensa rápido, e as palavras não acompanham a mente ansiosa e acelerada. Não sei se isso é verdade. Alguns dias atrás, uma de minhas companheiras de trabalho me fez uma pergunta simples e eu, na ansiedade de responder logo, falei, em alto e bom som “o nome é proposto” ao invés de falar “o nome é suspeito”. Por quê? Não sei. Não estava pensando em nenhuma proposta. A palavra “proposto” sequer estava inserida em qualquer contexto que estava me cercando naquele momento. O termo simplesmente nasceu, criou vida e escapou, em milésimos de segundos. Passou tempo demais para eu me corrigir, então eu só voltei para o meu lugar, meio envergonhada, e deixei a palavra aleatória lá, perdida pelo ar.
Os efeitos da pandemia ainda nos assombram, mesmo que de forma sutil. O home office é uma vantagem, mas tirou de mim uma boa quantidade de palavras. Parei para pensar em quem eu era, há alguns anos atrás. Muita coisa aconteceu. Pandemia, mudança de cidade, independência, a chegada dos 30 anos… e nesse processo, parece que a alta necessidade de falar com tudo, todos e durante (quase) todo o tempo, ficou um pouco para trás. Ainda reconheço aquela mulher com alta necessidade de se colocar para quem quiser ver, mas hoje ela divide espaço com a mulher que se sente confortável ao se esconder um pouco, guardar um pouco das suas palavras para si mesma. Uma não toma o espaço da outra, elas apenas convivem entre si, às vezes de forma amigável, às vezes nem tanto. Mas existe um ponto em que as duas concordam na grande maioria das vezes: como ninguém as avisou antes sobre o verdadeiro valor do silêncio - e sobre o seu verdadeiro perigo também?
Palavras talvez sejam superestimadas. Muito se diz através da arte, da expressão, do olhar, do sorriso, de um traço feito a lápis no papel, que seja. O mundo exige que sejamos falantes e fluentes em idiomas para conseguirmos alcançar lugares não alcançados antes, mas o próprio mundo esquece de rever, no detalhe, e admirar a sua diversidade de linguagens. Encontrei uma notícia, datada do ano passado, sobre Piraí do Sul, onde foram encontradas pinturas rupestres em uma caverna, que retratavam araucárias - aquelas árvores finas porém espaçosas, encontradas na região sul do país. As pinturas têm cerca de 4 mil anos. Aquela árvore, de algum modo, representou alguma coisa para algum ser vivo que andava por aí. Representava tanto, que se ele de alguma forma expressou algo sobre ela verbalmente, essa informação foi perdida. Mas a pintura está lá. Dizendo tudo e nada, ao mesmo tempo, em um único idioma.
Eu já me vi na situação da menina que ficou sem palavras ao ver seu tão esperado sorvete cair no chão. O silêncio já inundou a minha face algumas vezes, seja por decepção, por uma boa surpresa, ou por simplesmente não ter mais nada a ser dito em um dia de cansaço extremo. Existem silêncios que inundam abraços, às vezes eles doem, às vezes eles confortam. Quando o silêncio vem de alguém que você espera barulho, é daquele tipo que corta a gente ao meio. E quando o barulho vem de alguém que você espera silêncio, o mesmo (ou talvez outro tipo de) corte acontece. Ele é invisível, mas ao mesmo tempo pode ser fatal. É preciso ter cuidado até mesmo quando se opta pelo silêncio.
Às vezes me pergunto como fui acabar gostando dessa ideia de escrever. Logo eu, falando sobre o silêncio de forma fragmentada, e fazendo das palavras a minha maior paixão. Quando eu era criança, era apaixonada pelos quadrinhos da Turma da Mônica (como talvez metade da geração millennial) e, curiosamente, os meus favoritos eram justamente aqueles que não tinham falas.
Por quê? Era fácil de imaginar as palavras sendo faladas por aquela turma. Era fácil imaginar a Mônica ou a Magali falando tudo o que eu falaria se eu morasse no bairro do Limoeiro. Era fácil não faltar palavras naquela época, porque elas podiam ser colocadas onde eu quisesse - nos quadrinhos, na boca dos amigos imaginários, nas fanfics que sequer pensavam em ter esse nome. Não era difícil colocar nada em palavras. Bastava tirar os pés do chão - que hoje nos prende a ele com a força da realidade e da gravidade - e fazer o que uma criança faz de melhor: imaginar.
Do outro lado do muro ✨
Achei genial o texto da newsletter da
, trazendo aquele velho tema: paixão x trabalho.A
falando sobre o amor pelos dogs <3
A
agora tem uma newsletter… como não amar e correr pra ler no segundo em que ela publica?
achei super interessante o formato de texto que você trouxe nessa edição!
o difícil é encontrar o equilíbrio entre o silêncio e o som.